O Brasil vem vivendo o crescimento expressivo das apostas esportivas, em boa parte estimuladas pela facilitação do acesso a plataformas de apostas online. Para além dos ganhos gerados à indústria, o fenômeno tem se traduzido em desafios para o poder público, em especial na proteção das camadas mais vulneráveis da sociedade. De acordo com o Instituto DataSenado, 42% das pessoas que investem em apostas esportivas possuem dívidas pendentes, e dados recentes do Banco Central apontam que aproximadamente cinco milhões de beneficiários do Bolsa Família gastaram cerca de R$ 3 bilhões em “bets” somente em um mês de agosto.

Apressada inicialmente por um viés arrecadatório, a legislação que regula o setor também se vê agora diante de efeitos socioeconômicos complexos. Questões como aumento do endividamento, emergência de quadros de jogo patológico e até propostas para restringir a publicidade em estádios e camisetas de futebol estão na pauta de debates.

Na Universidade de Fortaleza (Unifor), mantida pela Fundação Edson Queiroz, o professor Eduardo Rocha Dias, procurador federal da Advocacia-Geral da União (AGU) e docente do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD), pesquisa esse tema. Ele lidera o projeto “Apostas Esportivas e a Prevenção do Jogo Patológico: aperfeiçoamento da Lei 13.756/2018 e o uso de algoritmos para monitoramento de jogadores em risco”, recentemente contemplado pela Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap).

Eduardo fala sobre o panorama socioeconômico e jurídico dos jogos de apostas virtuais, comentando as consequências para grupos em situações de vulnerabilidade e pontuando caminhos para aprimorar as discussões regulatórias no Brasil.


Portal Ciência: Desde que foram liberadas no Brasil em 2018, as apostas virtuais têm se expandido e passam hoje por um processo de regulamentação, com aplicação prevista para janeiro de 2025. Qual a importância de definir uma legislação específica para essa atividade, tanto a nível jurídico quanto social?

Eduardo Dias: O jogo, ainda mais em formato online, pode gerar danos e externalidades negativas, demandando uma regulação estatal eficiente. Há o risco de dependência, de endividamento, a necessidade de preservar a integridade das apostas, evitando manipulações, além de combater possíveis usos para lavagem de dinheiro ou tráfico. Com as novas tecnologias e mudanças de hábito, o jogo online se torna disponível 24 horas por dia, o que amplia a chance de vício.

No Brasil, o jogo é, em regra, uma contravenção penal (art. 50 do Decreto-Lei 3.688/1941), mas existem exceções (loterias oficiais, apostas em corridas de cavalo). A Lei 13.756/2018 permitiu as apostas de quota fixa, mas levou tempo para ser regulamentada. Em 2023, a Lei 14.790 trouxe dispositivos para ordenar esse mercado, com o Ministério da Fazenda como órgão regulador. O foco inicial foi a arrecadação, mas é preciso avançar na repressão às plataformas ilegais, na prevenção ao vício e em campanhas de conscientização. Muitas empresas sérias já buscam adequar-se, enquanto outras operam à margem, enganando consumidores. Agora, o governo corre para corrigir esse “limbo normativo”.


Portal Ciência: Um relatório do Santander mostra que a fatia de renda familiar alocada em apostas passou de 0,8% a 1,9% desde 2018, deslocando recursos inclusive de bens de primeira necessidade. Como isso afeta a qualidade de vida e a saúde da população brasileira, e qual o posicionamento do mundo jurídico sobre esse problema socioeconômico

Eduardo Dias: Falta educação financeira. O jogo deve ser visto como um entretenimento em que se pode perder, não como meio de renda. Contudo, muitas pessoas, em especial as mais vulneráveis, se endividam ao tentar ganhar dinheiro fácil. E o impacto recai de maneira mais grave sobre quem tem pouca renda.

Há urgentemente a necessidade de reprimir plataformas ilegais e limitar o acesso de crianças e adolescentes, além de promover campanhas educativas. Também considero essencial avançar na restrição da publicidade dos jogos — à semelhança do que ocorre com cigarros e bebidas alcoólicas. A legislação atual obriga a veiculação de avisos sobre os riscos do jogo, mas creio que precisamos dar passos mais consistentes.

Portal Ciência: Além das regras de operação, há a necessidade de intervir no controle publicitário, sobretudo no ambiente digital e nas redes sociais. Como esse monitoramento pode ser feito de forma eficiente, inclusive no conteúdo patrocinado por “influencers”?

Eduardo Dias: Hoje, a publicidade é permitida com certas restrições: não pode mirar crianças e adolescentes, não se deve apresentar o jogo como fonte de renda e deve haver advertências sobre o risco de vício. Mesmo assim, acho que podemos restringir ainda mais.

A legislação em vigor prevê que influenciadores (afiliados) sigam as mesmas regras e que empresas e afiliados sejam corresponsáveis pelos danos decorrentes de anúncios enganosos. A autorregulação via Conar é um caminho, mas não creio que seja suficiente. Seria plausível uma interdição total ou parcial da publicidade de apostas, a exemplo do que a Lei 9.294/1996 faz para o tabaco. Alguns movimentos nesse sentido começam a surgir em países como o Reino Unido, onde times da Premier League decidiram não mais estampar marcas de apostas em seus uniformes a partir de 2025-2026.

Portal Ciência: De acordo com o Banco Central, cinco milhões de usuários do Bolsa Família gastaram, somente em agosto, R$ 3 bilhões em apostas. Já o DataSenado revela que 52% dos apostadores recebem até dois salários mínimos. Quais caminhos devem ser considerados para proteger esses grupos vulneráveis

Eduardo Dias: Uma das discussões é se se poderia vedar a participação, pelo CPF, de beneficiários do Bolsa Família, já que, teoricamente, esse dinheiro é destinado a necessidades básicas. Mas, na prática, as pessoas podem sacar o benefício e apostar de qualquer modo — ou usar o CPF de terceiros. Essa proibição pode também ser questionada sob o argumento de ferir a autonomia do cidadão.

Outra ideia é estabelecer limites de gastos. No Reino Unido, discute-se que, ao chegar a certo limite, a plataforma deve alertar o usuário, sugerindo uma pausa e indicando ajuda médica ou psicológica. Para pessoas com nome negativado ou já endividadas, uma regra mais rigorosa poderia ser aplicada. O ideal é buscar um equilíbrio entre a proteção dos vulneráveis e o respeito à liberdade individual.

Portal Ciência: Várias propostas tramitam na Câmara, como o PL 3.718/2024, que prevê restrições ou proibição de apostas para idosos, pessoas endividadas ou inscritas em programas sociais. Medidas como zerar o limite do cartão do Bolsa Família para jogos são eficazes ou mesmo constitucionais?

Eduardo Dias: Essas ações podem ser questionadas por serem consideradas “paternalistas” ou por poderem ser facilmente burladas. Sou favorável a limites máximos de perdas e a um monitoramento mais eficaz, aliado a uma proibição total da publicidade. Também precisamos de dados concretos — saber quantos apostadores existem, quantos são compulsivos, como as empresas lidam com esses casos — para embasar políticas públicas mais assertivas.

A regulamentação deve incluir o Ministério da Saúde e o SUS na discussão, para preparar atendimento às pessoas viciadas. E, sem dúvida, melhorar a coleta de evidências sobre o comportamento de cada jogador, permitindo uma identificação precoce do risco de endividamento ou vício.

Portal Ciência: Em seu projeto financiado pela Funcap, você tem se aprofundado no estudo dos jogos online e da prevenção do jogo patológico. Como a pesquisa aborda a questão do monitoramento de jogadores e a possibilidade de autoexclusão das plataformas?

Eduardo Dias: Ao iniciar a pesquisa em 2023, não imaginávamos que o problema ganharia tamanha proporção. Nosso foco recai sobre formas de aprimorar a legislação, sobretudo para prevenir o jogo patológico, classificado como dependência comportamental pelo DSM-5 e como vício (F63) na CID.

Estudamos exemplos internacionais, como no Reino Unido, em que se utiliza inteligência artificial para detectar comportamentos anômalos de apostadores. Se um usuário ultrapassa certo limite, é convidado a refletir e buscar ajuda. Também analisamos a autoexclusão centralizada, modelo já utilizado em Portugal, onde o apostador pode se excluir simultaneamente de todos os sites.

Dentro do projeto, planejamos realizar um seminário na Unifor em 2025 e publicar um e-book com propostas de melhoria regulatória. A meta é contribuir para que a legislação brasileira proteja de maneira mais efetiva a saúde mental das pessoas, em especial as mais vulneráveis.


Sobre o entrevistado

Eduardo Rocha Dias é Procurador Federal (categoria especial) da Advocacia-Geral da União (AGU) e Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Fortaleza (Unifor). Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará (1992), concluiu mestrado na mesma instituição (1997).

Além disso possui doutorado pela Universidade de Lisboa (2007) e estágio pós-doutoral na Universidade Presbiteriana Mackenzie (2022). Especialista em Direito Administrativo, Previdenciário e da Seguridade Social, integra o Núcleo de Estudos sobre Direito do Trabalho e da Seguridade Social (NEDTS) e o Grupo de Estudos e Pesquisa em Segurança Social, Trabalho Decente e Desenvolvimento (GENTE).


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